Por Patricia Blauth*
extraído de Debates Sócio-Ambientais Ano II nº 5 out 96/jan 97
Com a valorização da reciclagem de resíduos no Brasil, algumas indústrias passaram a inserir em seus produtos símbolos que inferem à reciclabilidade de materiais. As associações setoriais de vidro, plástico, papel/papelão, alumínio e aço desenvolveram símbolos padronizados para cada material, em parceria com o CEMPRE ¬ Compromisso Empresarial para Reciclagem, entidade voltada para o incentivo da reciclagem no país. O intuito deste código seria o de facilitar a identificação e separação dos materiais para reciclagem, ajudando "a criar uma consciência ecológica nas pessoas, ao passarem a conviver com esses símbolos padronizados". Os símbolos se tornaram cada vez mais presentes em embalagens, apontadas como um problema nos programas de gestão de resíduos sólidos, por representarem, em média, 33% do peso total do lixo nas cidades. Preocupado em conscientizar o setor produtivo sobre sua responsabilidade na questão da reciclagem, o CEMPRE afirmou que os símbolos não seriam "armas de venda" ou promocionais, e que estes "não garantem que o referido produto seja ecológico ou mais reciclável que o do concorrente".
Isso não é, porém, o que vem ocorrendo. Valendo-se da inexistência de programas de orientação ao consumidor e da falta de informações detalhadas, como a origem do material "rotulado" e o custo ambiental de sua produção, as indústrias se adiantaram na apresentação destes símbolos, usando-os com caráter essencialmente mercadológico, contribuindo para uma "consciência" ecológica baseada:
1. na suposição da reciclagem garantida...
Os símbolos apenas indicam que os materiais são potencialmente recicláveis. O sistema de codificação adotado para os plásticos no Canadá alerta para o fato de que a presença do símbolo "não é uma garantia enunciada ou implícita de que qualquer recipiente é próprio para ser transformado em outro produto". Ainda que seja tecnicamente reciclável, nenhum material deve ser considerado realmente reciclável se não houver mercado para ele. Alguns países têm tentado dar maior credibilidade à rotulagem ambiental. Na Holanda, por exemplo, os símbolos só podem ser usados se existirem formas adequadas de coleta e destinação disponíveis para o público a quem estes símbolos se dirigem. O problema é que, no Brasil, ninguém pode estar seguro de que as embalagens serão recicladas independentemente, nem ao menos, da mudança nos hábitos de descarte da população. O que fazer, por exemplo, com a caixa de um hambúrguer, contendo o símbolo de "reciclável", numa lanchonete que não dispõe de lixeiras especiais para um descarte diferenciado ou numa cidade em que não há coleta seletiva de lixo, nem sucateiros, nem indústrias de reciclagem próximas? A reciclagem de qualquer material é um processo industrial que exige infra-estrutura específica e depende de uma série de fatores, especialmente de ordem econômica. De que adianta uma escola fazer campanha para arrecadar embalagens recicláveis se não há quem queira esses materiais? Muitas vezes, sucateiros recusam até doações de recicláveis, pelo fato de a retirada destes materiais não compensar o custo do frete. Não existe um compromisso, por força de legislação específica, de as indústrias brasileiras coletarem ou apoiarem iniciativas de coleta e processarem os materiais que produzem. Pelo contrário, nossas indústrias não tem demonstrado interesse em se responsabilizar pelos danos ambientais causados por seus produtos.
2. na noção da reciclagem infinita...
Os símbolos geralmente sugerem um ciclo fechado perfeito, como se a possibilidade de transformação de uma caixa de papelão em outra, por exemplo, após seu descarte, fosse ilimitada. O ciclo fechado é especialmente inadequado no caso dos plásticos. Uma garrafa descartável de refrigerante ou de água não será reciclada e transformada numa nova garrafa, mas sim em outros produtos, com características diferentes, como o enchimento para sacos de dormir, jaquetas de ski, solados, etc. (E como a oferta de garrafas descartadas é maior do que a demanda por sacos de dormir, jaquetas e solados, que são produtos mais duráveis, haverá sempre garrafas sobrando que acabam no lixo). A produção de novas garrafas descartáveis continua dependendo da exploração de matéria-prima virgem. Nesta situação, portanto, o símbolo estaria iludindo o consumidor, a ponto de alguns grupos ambientalistas americanos exigirem sua retirada das embalagens plásticas.
3. no mito da embalagem ecológica...
As embalagens descartáveis são apresentadas como modernas e práticas, como uma tendência do mercado, inclusive internacional. As gincanas "educativas " de arrecadação de latas de alumínio em escolas ¬ o Projeto Escola da Latasa ¬ tem recuperado muito material para reciclagem, porém tem servido para aumentar substancialmente a venda de lata no país. O Programa PróÐLata, por sua vez, que divulga "o potencial de reciclabilidade do aço e um selo de garantia de reciclagem" é mais honesto: admite ser um programa de Estímulo ao Consumo da Embalagem no Brasil, cujo habitante consome apenas 5 kg de aço/ano (contra os 18 kg registrados nos Estados Unidos). O consumidor, portanto, (des)orientado pela propaganda e induzido pelos símbolos, passa a comprar embalagens descartáveis achando que está, necessariamente, contribuindo para preservar o ambiente. Se podemos chamar alguma embalagem de "ecológica" é a garrafa retornável ¬ nosso "vasilhame", "casco" ou garrafa com depósito ¬ que pode ser usada várias vezes, circulando entre o consumidor e a empresa de engarrafamento, em oposição à descartável, one-way. As garrafas retornáveis dominavam o mercado internacional de bebidas até 1975. Embora em 1981 esta situação tenha se invertido nos Estados Unidos, onde a maioria das bebidas carbonatadas é vendida em garrafas one- way ou em latas, na Europa elas estão voltando a ganhar fatias maiores dos mercados de vinho, leite e outras bebidas. A Dinamarca, por exemplo, proibiu em 1977 as embalagens descartáveis para bebidas não alcoólicas e, em 1981, para cerveja. Em Portugal, o Decreto-lei 322/95, que estabelece as normas para a gestão de embalagens e resíduos de embalagens, prioriza a prevenção de sua produção e o retorno de embalagens usadas. Portanto, a embalagem descartável para bebidas não é uma tendência do mercado internacional. Ora, considerando que reciclar qualquer material também consome água, energia e polui o ambiente, não é mais "ecológico" evitar a geração de lixo do que reciclá-lo?
Diretrizes internacionais voltadas para a questão do lixo têm orientado para a minimização de resíduos, através de uma seqüência de procedimentos didaticamente apresentada como os 3 Rs: redução(na fonte geradora), reutilização direta dos produtos, e reciclagem de materiais. A ordem dos Rs segue o princípio de que causa menor impacto evitar a geração do lixo do que reciclar os materiais após seu descarte. No Brasil, a discussão em torno da minimização de resíduos tomou impulso com a Agenda 21, documento que representa o acordo entre as nações no sentido de melhorar a qualidade de vida no planeta, elaborada durante a Conferência Rio-92. No capítulo sobre Manejo Ambientalmente Saudável dos Resíduos Sólidos, a Agenda afirma que a melhor maneira de combater o problema do lixo é modificar os modelos de consumo, e aponta: "a adoção de regulaçães nacionais e internacionais que objetivam implementar tecnologias limpas de produção, resgatar os resíduos na sua origem e eliminar as embalagens que não sejam biodegradáveis, reutilizáveis ou recicláveis, é um passo essencial para a criação de novas atitudes sociais e para prevenir os impactos negativos do consumismo ilimitado".
Com base na Agenda 21, a Secretaria do Meio Ambiente do Estado de Sço Paulo está elaborando seu Programa Estadual de Resíduos Sólidos que, novamente, indica a necessidade de "diminuir a geração de toda espécie de resíduos".
Devido à série de implicações político-econômicas e culturais que a mudança no padrão de consumo impõe no atual modelo urbano-industrial, poucas iniciativas de redução ¦ evitar a geração de lixo ¦ tem sido efetivamente postas em prática. E é por isso que o equacionamento da problemática dos resíduos tem se centrado no último R ¦ a reciclagem. Se a reciclagem de materiais, por um lado, polui menos o ambiente e envolve menor uso de matérias-primas virgens, água, e energia, por outro, ela é perfeitamente compatíível e beneficiária dos atuais níveis de desperdício que provocamos.
Os símbolos sobre reciclabilidade talves pudessem funcionar quando se implementasse a ISO 14000, uma série de normas de gestão ambiental que vêm sendo discutidas desde 1993, algumas das quais sobre rotulagem ambiental. O primeiro evento internacional no Brasil sobre o tema, a ser realizado em março, prevê a discussão em torno de como uma empresa comprovará que seu produto é reciclável, reciclado etc. Ainda que a série ISO 14000 seja aprovada, com base em critérios internacionalmente aceitos, ela será "regulamentada" e fiscalizada pelo mercado, não funcionando como legislação específica nos diversos países.
Uma iniciativa brasileira que poderá contribuir para dar credibilidade à rotulagem ambiental é o Programa Consumidor e Meio Ambiente, desenvolvido pela Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo. Dentre seus objetivos, estão o de 1) diagnosticar o perfil de consumo da sociedade, 2) pesquisar os fatores indutores do consumo desenfreado, 3) tornar a certificação ambiental um instrumento válido de orientação ao consumidor, implementando a ISO 14000, e 4) reduzir a produção de resíduos. O programa, enfim, resgataria o princípio dos 3 Rs, alertando a população sobre as limitaçães da reciclagem e seus símbolos.
Mas enquanto a ISO 14000 e o Programa Consumidor e Meio Ambiente, dentre outros, não forem implementados, devemos tomar cuidado, pois, desvinculados de um trabalho de orientação ao consumidor e de educação ambiental, aliado à inexistência de um sistema efetivo de recuperação de materiais no Brasil, os símbolos da reciclagem inseridos nas embalagens, supostamente com o intuito de facilitar a identificação e separação de materiais para descarte e coleta seletivos e, em última análise, diminuir o volume de lixo destinado a aterros e lixões tem causado o efeito oposto. Para mero "alívio de consciência" do consumidor, e como apelo mercadológico para o produtor, os símbolos vêm incentivando a descartabilidade, legitimando o desperdício e aumentando a quantidade de lixo gerado nas cidades.
* Patricia Blauth
Bióloga, educadora e consultora na área de minimização de resíduos (menoslixo@bol.com.br)
quarta-feira, 23 de janeiro de 2008
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