sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008
Consumo, descarte e riqueza
Por Fabio Reynol, da ComCiência
Mais da metade da produção mundial de lixo urbano pertence aos cidadãos dos países desenvolvidos. A cada ano, 2,5 bilhões de fraldas são descartadas pelos britânicos, 30 milhões de câmeras fotográficas descartáveis vão para os lixos japoneses e 183 milhões de lâminas de barbear, 350 milhões de latas de spray e 2,7 bilhões de pilhas e baterias são destinadas aos lixões norte-americanos. Até as indústrias da fatia mais rica do planeta são campeãs na geração de rejeitos. Estima-se que para cada cem quilos de produtos manufaturados nos Estados Unidos, são criados 3.200 quilos de lixo. A organização indiana Centre for Science and Environment (CSE), que levantou esses dados, chegou à conclusão de que os países ricos são melhores produtores de lixo do que propriamente de bens de consumo. Os números também revelam uma faceta do sistema produtivo moderno: a quantidade de lixo produzida está diretamente associada ao grau de desenvolvimento econômico de um país. Quanto mais abastada, mais lixo a nação produz. Não é por acaso que o país mais rico do mundo, os Estados Unidos, lidera o ranking dos maiores geradores de lixo per capita do mundo, ostentando a média de quase meia tonelada de rejeitos por habitante a cada ano.
Parte da explicação desse problema está no desequilíbrio entre os povos na participação dos mercados de consumo. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) já havia levantado em 1998, em seu último relatório sobre consumo mundial, que só 20% da população do planeta é responsável por 86% dos gastos com o consumo individual. O PNUD apurou ainda que 45% das carnes e peixes consumidos no mundo vão para os pratos desse um quinto mais rico da população, o mesmo que se utiliza de 58% da energia do planeta. Do outro lado, 60% das 4,4 bilhões de pessoas que habitam os países em desenvolvimento vivem sem saneamento básico, 20% mora em habitações precárias e um terço delas não tem nem água potável. Situações sociais tão díspares também resultam em impactos diferentes sobre o meio ambiente, e os resíduos sólidos, a que comumente chamamos de lixo, estão entre eles.
O ambientalista Alan Thein Durning, diretor executivo da Norwest Environment Watch, uma ONG norte-americana, associou o consumo crescente das nações ricas aos principais problemas ambientais do planeta. Em seu livro How much is enough? The consumer society and the future of the earth (Quanto é o bastante? A sociedade de consumo e o futuro da terra), Durning dividiu o mundo em três grupos de consumo, de acordo com o impacto ambiental produzido por cada um. No topo da pirâmide, segundo o autor, está 1,1 bilhão de pessoas que andam de carro e avião, abusam dos produtos descartáveis e consomem muita comida embalada e processada. No meio, situa-se a maior parcela da população, com 3,3 bilhões de pessoas que andam de ônibus ou bicicleta, mantém um consumo frugal e se alimentam de produtos e grãos produzidos localmente. Por fim, 1,1 bilhão de indivíduos que andam a pé e não têm acesso às condições mínimas para manter a própria saúde, vivem com uma dieta irrisória de grãos e água não-potável. O estudo de Durning conclui que a fatia mais rica do globo é, de longe, a mais poluidora.
Além da quantidade, a qualidade do lixo também pode identificar o grau de riqueza de seu produtor. O papel descartado, por exemplo, poderia ser um fiel indicador de desenvolvimento econômico de uma nação, segundo dados publicados pelo periódico britânico The Economist. Nos países de baixa renda, de acordo com a publicação, o papel responde por apenas 2% do lixo; nos de renda média, o percentual sobe para 14%; e nas nações ricas, os derivados da celulose chegam a impressionantes 31%, quase um terço da montanha de lixo. Com os restos orgânicos de origem vegetal, ocorre o oposto. Na parte mais favorecida do planeta, esse lixo equivale a 25% do total; nas regiões de riqueza intermediária ele fica em 47% e onde há mais pobreza esse descarte chega a ser 52% dos rejeitos.
O lixo dos pobres e dos ricos
As diferenças entre as classes sociais na produção dos resíduos sólidos são percebidas também em escalas menores. De setembro a dezembro de 2003, a geóloga Maria de Fátima da Silva Nunesmaia, da Universidade Estadual de Feira de Santana, na Bahia, coordenou uma pesquisa que contou com a ajuda da Empresa de Limpeza Pública de Salvador (Limpurb). O grupo de Nunesmaia analisou, nesses três meses, a composição do lixo doméstico produzido pela população da capital baiana. Entre as principais diferenças encontradas entre o lixo dos mais ricos (renda familiar acima de 15 salários mínimos) e o dos desfavorecidos (renda de até cinco salários mínimos) está o percentual de resíduos orgânicos. Enquanto os soteropolitanos mais abonados têm 50% de material orgânico em seu lixo, nas camadas mais pobres essa parte representa 57%, em média. No descarte de papel e papelão, os ricos costumam ter percentualmente o dobro do montante de seus conterrâneos mais pobres, 7,28% contra 3,56%, respectivamente. Apesar do estudo minucioso, a geóloga admite que boa parte do lixo, especialmente o das classes mais ricas, pode ter sido recolhida pelos catadores antes de chegar às mãos dos pesquisadores. Uma hipótese que se reforça ao olharmos a participação dos resíduos sólidos na economia nacional.
O lixo é fonte de renda direta para mais de meio milhão de brasileiros que atuam como catadores. Foi o que apuraram as psicólogas Luiza Ferreira Medeiros e Kátia Barbosa Macedo, da Universidade Católica de Goiás. Em seu trabalho “Catador de material reciclável: uma profissão para além da sobrevivência”, publicado em 2006 na revista Psicologia & Sociedade, as duas colocam os catadores na chamada “inclusão social perversa”, uma maneira de mascarar a exclusão social de que eles são vítimas. Isso acontece porque muitos autores associam a exclusão social ao desemprego. O catador de lixo, no entanto, trabalha sem ter um emprego e assim é visto como alguém inserido na sociedade, quando, na verdade, ele pertence a uma categoria que está bem longe de gozar dos direitos e até dos tratamentos dispensados aos demais trabalhadores. Segundo a mesma pesquisa, as idéias negativas relacionadas ao lixo como algo sujo, inútil e digno de descarte são estendidas também aos catadores para os olhos de boa parte da sociedade, o que alimenta os preconceitos.
A cientista política Vanessa Baird, na Universidade do Colorado, nos Estados Unidos, resume em uma frase as relações que as sociedades mantêm com os catadores de lixo: “A sociologia do lixo é simples, o rico produz e o pobre trabalha com ele. O rico que o gera é considerado ‘limpo', e o pobre que o recolhe é considerado ‘sujo'”, alfinetou a pesquisadora na publicação New Internationalist. Essa lógica discriminatória e preconceituosa foi confirmada por uma pesquisa brasileira realizada na Universidade Federal de Alagoas. Ao entrevistar catadores de lixo para a pesquisa intitulada “Lixo, trabalho e cidadania”, a socióloga Paula Yone Stroh e a geógrafa Michela de Araújo Santos coletaram o seguinte depoimento de uma catadora: “Quando a gente diz que é catador de lixo, muita gente acha que a gente é sujo... até se a gente pedir um copo d'água, e receber um caneco, quando a gente devolve a pessoa joga no mato. Já aconteceu isso comigo.”
Além de provocar esse estigma social, a reciclagem de lixo, da maneira como tem sido trabalhada, é considerada por alguns especialistas como mais um obstáculo ao desenvolvimento ambientalmente responsável da sociedade. Quem explica isso é o engenheiro sanitário Paulo Roberto Santos Moraes, da Universidade Federal da Bahia. “A mensagem que se ouve é a de que com a reciclagem o problema do lixo está resolvido, enquanto não há nenhum esforço para tentar reduzir a própria produção do lixo, que é a origem do problema”, alerta o pesquisador ao revelar que tem detectado aumentos ano após ano na quantidade de lixo produzida sem que nada seja feito a respeito. Além disso, Moraes lembra que muitas vezes não são considerados os custos ecológicos da reciclagem como os gastos com água e energia demandados no processo e que podem acabar gerando um ônus ambiental maior do que se o material fosse enterrado num aterro.
E apesar de a reciclagem ajudar economicamente muita gente e reduzir consideravelmente o volume dos aterros, no Brasil ela tem desprezado a parte do lixo que mais causa impacto ambiental, a orgânica, segundo apurou Maria de Fátima Nunesmaia. “É o lixo orgânico que polui o solo, contamina cisternas e lençóis freáticos,” diz a pesquisadora. “Como a quantidade de material orgânico é maior nas classes menos favorecidas, o Brasil possui um grande volume desse tipo de lixo sendo descartado sem nenhum tratamento”, denuncia a geóloga. A especialista aponta o exemplo do Canadá, onde o lixo orgânico tem uma participação nos resíduos sólidos bem menor que no Brasil. Naquele país, comitês regionais são responsáveis pelo tratamento do lixo orgânico em mini-usinas locais de compostagem. “Éramos nós que devíamos fazer isso e dar o exemplo ao mundo”, lamenta Nunesmaia.
Brasil joga US$ 10 bi no lixo a cada ano
Com um índice nacional de 20% de reciclagem, o Brasil perde por ano o montante de US$ 10 bilhões por não recuperar todo o seu lixo. A conta foi feita pelo economista especialista em meio ambiente, Sabetai Calderoni, do Instituto Brasil Ambiente. “Não tem saída, os aterros ficarão cada vez mais caros a ponto se tornarem inviáveis a qualquer prefeitura”, acredita Calderoni. Segundo ele, uma prefeitura de uma cidade de 200 mil habitantes gasta, em média, R$ 8 milhões por ano com o transporte de lixo. Se ela reciclasse todos os resíduos sólidos, além de economizar os R$ 8 milhões, ainda ganharia R$15 milhões reciclando, inclusive o lixo orgânico. “Com a vantagem de que um centro de reciclagem tem uma área sete mil vezes menor que a de um aterro sanitário”, explica o economista. O problema é que a reciclagem não agrada a todos os setores da economia.
Há grandes corporações com interesses econômicos diretamente relacionados ao aumento da produção do lixo. “Basta lembrar que a maioria das companhias de limpeza pública terceirizadas cobram por tonelada de lixo coletada”, revela o engenheiro sanitário Paulo Roberto Moraes, da UFBA. Além disso, aterros sanitários controlados têm atraído investidores internacionais ao Brasil, de olho no mercado internacional de créditos de carbono (veja reportagem). Também há os fabricantes de embalagens que não se interessam, por motivos óbvios, em criar produtos retornáveis. Para todos esses ramos da economia, diminuir a quantidade de lixo representa ganhar menos dinheiro.
Se a superprodução já era prevista por Karl Marx como uma característica intrínseca do sistema capitalista, resta-nos uma pergunta perigosa: como o lixo também alimenta uma indústria rentável, a sua redução não seria uma contradição para o sistema produtivo moderno? “Lógico que é”, responde Moraes. “Interesses poderosos não deixaram que o Brasil tivesse até hoje uma política nacional de tratamento de resíduos sólidos. Os projetos de lei que abordaram a questão não foram adiante,” lamenta o engenheiro, para quem são necessárias mudanças educacionais e culturais em todos os níveis a fim de que o Brasil evolua nessa questão. O pesquisador recomenda as diretrizes básicas para que o capitalismo moderno não seja soterrado pelo seu próprio lixo: primeiro, devemos reduzir a produção de resíduos; segundo, reciclar o lixo que for produzido e, por fim, tratar o que não puder ser reaproveitado. Necessariamente nessa ordem.
Crédito de imagem: Sxchu
(Envolverde/ComCiência)
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